Sunday, May 09, 2010

Memórias

Som de vela que se apaga. Vento, sinto, todo o tempo. Na minha pele calejada, na minha alma já fraca, no meu cabelo fino e branco. Na minha memória pequena, o meu suspiro profundo, talvez meu último. No meu ritmo lento, no meu passado ausente, me perco em presentes.

"Ontem mandei uma carta. Escrevi para minha família longe daqui. Escrevi como é a minha vida aqui. Escrevi contando como as moças são bonitas, como o clima é tropical, como a dança é quente. Sensual. Eu vi. Escrevi que sinto saudade do tempo em que eu usava saia rodada e sacudia na matinê. Escrevi de como eu costurava lindos vestidos. Escrevi que namoro escondido. Contei que sonho em ter filhos. Que quero estudar. Estou estudando. Ontem eu viajei, fiz curso de culinária francesa. Plantei feijão no algodão. Tomei chuva. Sabe que aprendi a ler? Eu li. Dou nó de marinheiro em cadarço. Decorei o nome de Dom Pedro I. Vi o sol nascer na Islândia. Tomei café com o José Silva, falei com a madame Gil. Abracei a estátua viva da rua, fiz amizade com um beija-flor, tive um sapato vermelho cereja. Falo português fluente, nado em mar aberto, saio caminhar. Ontem eu caminhei. Fui visitar minha mãe, minha vó, e eu."

Me vi nos olhos cansados de 93 anos.
Na imaginação de uma mente de 8.
No sorriso de um homem que tem a minha idade.

Vi minha vida inteira ali. Minha vida, antes mesmo de eu estar aqui.
E continuei a vê-la. Mesmo depois que eu partir.

1 comment:

Bernardo Schmidt said...

Maravilhoso! Conciso e ao mesmo tempo transbrdante de sentimentos. Como todo bom texto, me deixou querendo mais. Não se atreva a parar e tirar esta minha alegria de te ler. Beijoss