Monday, June 01, 2009

Meu chapa

Ele sorria orgulhoso ao lado da sua neta orgulhosa de seu avô, sempre tão presente. Presenteava-a infinitamente, dizia ele: "Filinha, deixa na conta do vô e pega o que quiser." A menina entrava correndo na papelaria e ficava horas escolhendo papéis de carta, saia com um chumaço de folhas coloridas e corria trocar com as amigas. Ela adorava desenhar portanto, nunca esquecia de pegar uma ou duas novas canetas coloridas. Na padaria a menina apontava: "Quero esta bala, e esta, e esta..." Levava as melhores amigas para desfrutar daquela iguaria e dizia: "Escolham o que quiser". Como se não bastasse tamanha ousadia, se debruçava no balcão e anunciava, convicta: "Põe na conta do vô Miguel". Aquelas palavras soavam como magia e então, a mágica acontecia. Saia porta a fora do estabelecimento feliz, com seus bolsos entupidos de porcaria que para ela valiam mais do que dinheiro.
A menina passava as férias com o seu avô, numa cidade do interior onde ela desejava ficar lá pra sempre, daquele mesmo jeito, naquele mesmo tempo. O velho a acordava as 6 horas da manhã, sentava ao lado de sua cama com aquele sorriso de ponta a ponta o qual tinha dentes definitivos e de ouro, que brilhavam. Os olhos dele eram pequenos e ficavam apertadinhos quando sorria, lembravam chineses. A menina então se identificava, dava um beijo e um abraço de bom dia e num sobresalto pulava da cama ainda de madrugada, se arrumava rapidinho e corria para dentro da pampinha, o carro que os levava de cima pra baixo, de baixo pra cima. O avô ia cantando, murmurava alguma coisa e dali saia a sua canção. Acendia seu cachimbo e a neta gostava do cheiro afinal era o cheiro de seu avô, mas reclamava pois a fumaça incomodava. Ele ia acenando para todos que andavam na rua, e assim chegavam ao primeiro destino: A chácara. Seu avô era psicultor, criador especializado em catfishes, aqueles peixes que tem um bigode enooorme. Mas em suas terras também tinham vacas, codornas, galinhas, cachorros, gatos, carneiros, pinheiros. O que não faltava mesmo lá eram tanques de peixes, que pareciam lagos quadrados. Teve até um dia que a menina nadou dentro de um desses tanques com água escura e sentiu algas entrelaçando-se em suas pernas. Achou engraçado e sorriu. Uma vez que os dois já estavam lá de manhãzinha, a primeira tarefa do dia começava e era a sua preferida: Tirar leite da vaca. Lá ia ela entusiasmada com o caseiro, como se fosse a primeira vez. Sentava em um banquinho e aquela era sua terapia. Jorrava com as mãos o leite quentinho, que sentia as vezes escorrendo por entre os dedos, e enchia o balde. E então ia tomar café. Sentavam ela e seu avô na cozinha da casa dos caseiros, onde um dia ele também morara com sua avó e proseavam. Comiam e se esbaldavam na manteiga da Bete, a vaca que dava leite que era uma beleza. O queijo também era feito com leite da Bete, tudo da Bete era delicioso. Depois da comilança, era a hora de voltar para o escritório ali, bem em frente. A menina adorava o escritório, pois seu avô tinha uma cristaleira a qual não tinha porcelanas e sim potes de vidro. Compotas fechadas, cada uma contendo um tipo de ser vivo... morto, no alcool ou seja lá que liquido era aquele ali. Ela adorava ficar olhando cada um daqueles bichos, era sempre impressionante. Tinha uma cobra, uma cobra coral e mais cobras. Tinha ovas de peixe e até uma piranha! Mas ela gostava mesmo era do peixe que era só boca e dentes que ficava em cima da mesa do escritório, dando o clima de filme de cinema junto com papéis já amarelados e pretos, por conta do fumo que caía do cachimbo de seu avô. Na gaveta da mesa ele guardava um catfish de barro pintado com tinta que ela tinha dado um dia, de presente a ele, e que o emocionou. A menina era curiosa e por isso, perguntava sobre todas as coisas da vida para o seu avô. Ela o achava muito sábio, pois ele tinha sempre todas as respostas para todas as suas perguntas e sempre na ponta da língua. Um dia, observando curiosamente algumas moscas, perguntou a seu avô: "Vô, por que as moscas esfregam as patinhas uma na outra?" E para a sua surpresa, ele respondeu: "Sabe que eu não sei? Vou pesquisar para você e depois te conto." No dia seguinte ele rapidinho arrumou uma resposta, e avisou a menina: "Elas cospem nas patinhas para o açucar grudar mais fácil nelas". E para ela aquela resposta bastou, nunca se prontificou a saber se era mesmo verdade e sentiu-se satisfeita. E assim os dias iam passando sem demora, e logo era a hora de ir embora. E para todo mundo do mundo, o avô apresentava a menina. A carregava para todo canto e dizia, estufando o peito: "Esta é minha chapa." Chegavam cansados e sujos em casa. Tomavam banho, jantavam e ainda não enjoados da companhia um do outro sentavam à mesa, esticavam a tolha verde e acabavam a noite jogando pife-pafe. Seu avô a ensinou jogar baralho e as vezes a deixava ganhar de propósito. Ela sabia, mas fingia que não sabia. E gostava. Seu avô gostava de dormir no sofá, vendo TV. Adormecido, a menina gostava de passar batom em sua boca, pentear o seu cabelo e fazer algumas xiquinhas, cuidando dele como se ele fosse uma boneca. Pendurava brincos da avó em suas orelhas caídas, enrolava colares em seu pescoço. Depois tirava fotos, querendo guardar para a posteriedade. Muitas férias da menina foram assim. Tantas que nem consegue contar nos dedos. Depois voltava para a sua casa na cidade grande, chateada. Bolava planos para voltar. Qualquer briga com os pais era motivo para dizer que ia morar com o avô, e para ele ela ligava chorando: "Vô, vem me buscar." E ele com o coração partido e com o amor incondicional pela neta, dizia: "Calma filinha. Logo você vem pra cá, logo eu vou aí te buscar." Tentava consolar a menina... que se desmancha em lágrimas inconsoláveis até hoje, como mulher, lembrando como se quisesse reviver esses e tantos outros momentos. E até revive em pensamentos, mas chora. Chora porque dói. A saudade dói.
Mas isso a menina já sabia faz tempo.

**Te amo vô, pra sempre.